Justiça curricular levanta debate sobre desigualdade escolar e social
“O calendário escolar é uma convenção e a vida humana não é uma convenção”. Essa foi uma das falas iniciais da filósofa e pedagoga Branca Jurema Ponce, docente da PUC-SP, em conferência virtual do Programa de Pós-graduação em Educação da Metodista sobre justiça curricular.
A afirmação da professora é baseada na pesquisa que desenvolve com um grupo de profissionais parceiros, na qual buscam “conceituar a justiça curricular e debater desigualdades decorrentes da necessidade de cumprimento de um calendário escolar”, disse. “Estamos abraçando a causa de uma vida digna e superação das dificuldades”, completou.
Justiça curricular é um termo que está em constante conceituação em diversos pontos de vista ou situações diferentes. O pedagogo espanhol Jurjo Torres Santomé define como “o resultado da análise do currículo que é elaborado, colocado em ação, avaliado e investigado levando em consideração o grau em que tudo aquilo que é decidido e feito na sala de aula respeita e atende às necessidades e urgências de todos os grupos sociais”. A conceituação de Santomé é citada ou encontra similaridades em definições feitas por diversos pesquisadores brasileiros.
Antes de conceituar e buscar propor a igualdade escolar por meio do currículo, o trabalho do grupo vem de desdobramentos desde uma movimentação curricular ocorrida em 2008 no estado de São Paulo. “Naquele ano tivemos uma distribuição de apostilas em toda a rede de ensino e que vinha trazendo por trás daquilo uma proposta de educação, uma proposta de currículo que assume lugar central na cena internacional. A gente já sabe que o currículo também nasce de necessidades políticas e sociais de grupos, mas nunca esteve no centro da preocupação do mundo. O currículo escolar foi descoberto como ‘logos’ (palavra grega e termo da filosofia que significa fundamento, opinião, pleito, pensamento) importante a ser disputado e hoje há muitos interessados que não são necessariamente educadores, não são necessariamente aqueles que vêm batalhando há anos por uma educação democrática”, comentou Branca.
Segundo a professora, tal distribuição de apostilas trouxe incômodo e chamou a atenção do grupo. “Eram apostilas com aulas prontas, definidas e com passo a passo. Tinham aulas com divisões como se dissessem ‘agora faça isso, agora faça aquilo’, uma coisa extremamente detalhada. Naquele momento decidimos que íamos olhar isso mais de perto. Enquanto professora acompanhei esse movimento de chegada de materiais que vou chamar de uma imposição de um currículo que vinha de fora para dentro da escola, com a pretensão de que os professores pusessem em prática. Nós fizemos, inclusive, orientações de trabalho que tanto mostraram a dificuldade de professores com 20, 30 anos de experiência tendo que de repente reproduzir aquilo que vinha pronto, como trabalhos de escolas que decidiram resistir à chegada desse currículo, mas que obviamente tiveram dificuldades com a Secretaria da Educação. Vimos naquele momento essa realidade ainda fragmentada em nossas cabeças, ainda não tínhamos teorizado o suficiente para entender o conjunto das coisas”, disse.
Nos anos seguintes as observações continuaram, o que gerou novos estudos como ocorrido de 2011 a 2015. “Fomos realizando registros, orientando trabalhos e produzindo escritos sobre o que nós olhamos e colhemos nesse período. Vimos que essa tendência de apostilamento e currículo prescrito se aprofundou na realidade brasileira. Em municípios pequenos, as escolas recebiam pacotes de currículos produzidos por empresas privadas e eram chamadas pelos órgãos dos municípios que diziam algo como: ‘somos democráticos, trouxemos aqui as empresas que vão apresentar suas propostas e vocês que são da rede de ensino vão votar. Isso era democracia para eles. A escola pública começa a sofrer uma investida do mundo privado da educação”.
A pesquisadora continuou: “então começa a nascer aí uma nova forma de entender escola pública e escola privada. Porque se você pega o começo do século XX, a escola pública é aquela que tem o prédio público, seus professores pagos com recursos públicos, tem a conservação e dependência do Estado e ainda que tenhamos muitas críticas, ela era toda oriunda do Estado, enquanto a escola privada se sustentava com mensalidades e até hoje muitas escolas são assim, é uma escola absolutamente independente. No registro histórico a gente vê que a defesa disso passa pela ideia de que, assim, os cidadãos teriam possibilidades diversas, mas a gente sabe muito bem que essas possibilidades muitas vezes não são para todos. Hoje a gente tem o público e o privado entrelaçados, a escola pública tem o prédio público e professores concursados pagos pelo estado, mas já há professores com contratos de serviço, tem empresas que vendem para a escola produtos tecnológicos, o próprio ‘currículo’ e produtos dos mais variados. Então a verba pública desta escola começa a ir para o privado. A gente faz esse estudo de 2011 a 2015 de modo a identificar que política de currículo é essa, que políticas estão envolvidas e quais são suas ressonâncias na prática pedagógica”.
“A gente identifica isso como uma política de princípios da educação escolar vinda de fora, que isso tem sua raiz na União Europeia, que traz como premissa as competências predefinidas a serem cobradas, mensuradas pelas suas perovas, instrumentos de avaliação que se reproduzem aqui no Brasil. Você tem a prova nacional, a prova dos estados, que nada mais são que o modelo adaptado para o País”, complementou.
Justiça curricular, social e igualdade de oportunidades
A docente contou que, em continuidade ao trabalho, durante as pesquisas foram encontrados estudos de educadores espanhóis e o estudo de Santomé e o termo justiça curricular chamou a atenção do grupo, dando novo respaldo. “Esses escritos foram de grande valor para nós e, por isso, em 2016 começamos um projeto que investiga de forma mais aprofundada a desigualdade social decorrente da questão curricular. O projeto continuou por mais três anos, mas não se fechou fizemos outro projeto que se junta a esse, falando sobre justiça curricular em tempos de BNCC (Base Nacional Comum Curricular). A nossa construção teve que passar por uma nova conceituação de currículo, porque é um conceito muito aberto e você tem, talvez, um número igual de curriculistas e definição de currículo”.
Esta nova frente de trabalho deu origem ao que Branca e seus parceiros chamaram de Grupo de Pesquisa de Justiça Curricular (GEPEJUC). “Passamos ter a compreensão de que o currículo é uma prática social e pedagógica, que se manifesta em dois aspectos indissociáveis. Se manifesta como ordenamento sistêmico formal, ou seja, texto, política pública e também como vivência subjetiva e social. Este conjunto, para nós, é o currículo. Isso é o que me permite dizer que o currículo é o resultado de todas as ações, todo trajeto e de sua discussão enquanto texto até o ‘chão’ da escola e o produto final, que é o que o aluno efetivamente obtém, a formação desse aluno, é o que vai nos dar dimensão de como foi este currículo, a gente resgata a importância do sujeito e falamos de igualdade”, explicou.
“No final do século XX, temos teóricos sérios de origem liberal que tratam a igualdade pela via da meritocracia. A abordagem é algo como: ‘dou oportunidades iguais a todos e aquele que é melhor vai se destacar e será, por mérito, alguém melhor sucedido que aquele que não se sair tão bem’. Isso é como dizer, ‘eu ofereço a vaga, todo mundo pode entrar,’ mas não tínhamos nem vagas para todo mundo e até hoje não temos o mesmo número de vagas e o mesmo número de necessitados das vagas”, afirmou .
Em seguida, Branca falou sobre certa mudança nesse cenário e o ponto de vista da justiça curricular. “Esse passo já temos mudado e é bastante importante, que é igualar, sim, as oportunidades. Mas, uma vez na escola, o sujeito não pode ser expulso por não conversar com a cultura escolar, ele não pode ir embora, a escola tem que saber segurá-lo. A justiça curricular entende que o direito a educação é o sujeito ser considerado na escola como ele é, ser acolhido pela instituição escolar”.
A pesquisadora apresentou referências estudadas pelo GEPEJUC como Anísio Teixeira, Paulo Freire e Maria Nilde Mascellani. “Eles trazem experiências históricas democráticas que muitas vezes foram golpeadas no País, mas são estas experiências que irrigam a justiça curricular”.
“Nosso grupo, então, foi construindo um conceito de justiça curricular com essas bases: currículo pautado em direitos humanos, civis e políticos, ligado por experiências históricas democráticas. Se não cultivarmos na cultura escolar uma convivência solidária e democrática, não daremos conta de dentro de sala de aula criar condições para um currículo que forme o cidadão preocupado com o outro. Quero lembrar aqui da palavra alteridade, um valor que está na justiça curricular, que é a consideração, o respeito ao outro e isso é formado, não cai do céu. A escola tem que formar, em uma sociedade que foca no individualismo, mentes e corações que se preocupem com o outro. Então, a justiça curricular busca lutar contra outras tendências, pois o currículo é hoje um espaço de luta e temos que assumir que parte da sociedade lutará contra isso. Vamos lutar por este espaço”, finalizou Branca com um panorama do conceito trabalhado por seu grupo.
Mais sobre o trabalho do GEPEJUC relacionado à justiça curricular e conceitos trazidos pelo grupo pode ser encontrado nos artigos publicados na revista e-Curriculum, do Programa de Pós-graduação em Educação da PUC-SP:
A justiça curricular em tempos de implementação da BNCC e de desprezo pelo PNE.