Magali do Nascimento Cunha
Poderíamos meditar sobre muitas mensagens que este texto de Gênesis 18.1-15 traz: (1) a promessa de um filho a um casal idoso – o Deus que torna possíveis os impossíveis; (2) a perseverança que resulta da crença na promessa mesmo diante das dificuldades; (3) a risada de Sara ao ouvir (escondida) a promessa (falta de fé? Deboche? bom uso da razão?) e a escolha do nome do filho que se torna realidade com base nesta atitude; (4) a situação da mulher que é alvo da promessa mas não participa plenamente de todo o processo – tem que ouvir escondida; (5) a hospitalidade de Abraão e Sara, acolhendo estranhos em sua tenda com todas as honras...
Eu convido, então, a seguirem comigo na reflexão sobre esta última abordagem, tão necessária em nossos tempos: a hospitalidade e a acolhida do forasteiro, do estranho.
O relato
No relato de Gênesis há uma visita inesperada – três homens chegam enquanto Abraão estava tomando uma fresquinha no maior calor do dia. É nesta hora certamente inapropriada, de descanso, que os três estranhos chegam.
Interessante que eles não pedem nada – é Abraão que vai até eles oferecer acolhida. Ele tinha certeza que os homens estavam cansados, sujos, com sede e com fome. E ele oferece alívio para tudo isto: oferece descanso, água para se lavarem, água para beber e comida fresquinha.
Abraão não deixa por menos – prepara tudo com detalhes, oferecendo o melhor que tinha. Ele oferece água e pão mas dá mesmo é um grande banquete, com novilho, qualhada e tudo o mais. Engraçado é que tudo dá a entender que os estranhos é que fazem o favor de aceitarem o que ele tinha para oferecer.
Para nós, que vivemos num mundo em que cada um cuida de si e cada vez mais se fecha na sua casa, desconfiando de todos os desconhecidos, chega a ser engraçada a ansiedade e a forma como Abraão se esforça, se desdobra para acolher os estranhos.
Na verdade, Abraão estava fazendo o que ele aprendeu da cultura dos povos do oriente, especialmente os povos nômades, que eram eternos estrangeiros, peregrinos, estranhos em lugares sempre diferentes. Isto está na própria história do povo chamado hebreu – os habiru ou, peregrinos, aqueles que atravessam permanentemente fronteiras em busca de vida.
Deus mesmo chama Abraão para sair da terra dele e se tornar um peregrino. Deus promete abençoar todas as famílias da terra por intermédio de Abraão mas para isso torna Abraão um estrangeiro, um peregrino, que tem que atravessar muitas fronteiras para alcançar a promessa de Deus.
Abraão então aprende que os peregrinos, os habiru, são alvo da ação de Deus. Deus caminha com eles. O estranho, os de fora, são incluídos na comunidade de Deus. Portanto, acolher o forasteiro, o peregrino, o estranho, é o mesmo que acolher o próprio Deus. Abraão aprendeu isto e o valor da prática da hospitalidade. Por isso age assim. Jesus lembrou os discípulos disso quando, segundo o relato do Grande Julgamento, em Mateus 25, disse: “era forasteiro e me hospedastes”... “quando? perguntaram os justos”... “todas as vezes que o fizestes a um dos meus pequeninos a mim o fizestes”...
Abraão e Sara preparam um enorme banquete para reafirmar que hospitalidade anda junto com o ato de comer juntos. Comer juntos, partilhar da mesma mesa é o ato mais significativo de convivência na maior parte das culturas. É expressão de comunhão, de convivência, de partilha da vida, do que temos, uma experiência de gratuidade!
Uma experiência
Uma das experiências mais marcantes da minha vida aconteceu em 1987, numa roça próxima a Três Lagoas, Mato Grosso do Sul. Participava de um curso ecumênico e parte do programa incluiu visitas a comunidades de base espalhadas pelo Brasil. Fui para Três Lagoas e tive a oportunidade de visitar várias comunidades de base da Igreja Católica. Muitas na roça. Gente muito simples e muito pobre que vivia das plantações ou trabalhando com gado, muitas famílias arrendando terras de grandes fazendas. As visitas eram de surpresa mas éramos sempre recebidos com alegria. Eu e meus dois companheiros de curso éramos guiados por dois leigos e um padre. Cantávamos, fazíamos oração, éramos apresentados, e seguíamos adiante.
Lá pela quarta parada, numa casa, chegamos no horário de almoço. Eu perguntei meio sem graça s meus companheiros se era conveniente chegarmos à casa naquele horário, já que as visitas eram de surpresa. Lembrei da minha mãe: “Magali, nunca chegue na casa das pessoas na hora do almoço ou da janta sem ser convidada...” E ainda tinha a fato de as pessoas serem pobres e ficarem constrangidas de terem cinco pessoas chegando na hora do almoço e terem que ficar se desculpando de não terem o que oferecer...
O pessoal disse: “não, o que é isso... vamos, sim, eles vão ficar felizes... vamos lá, sim”. E aí, não deu outra: chegamos, a família estava à mesa comendo. Uma casa de madeira, bem simples, a mulher, o esposo de meia idade, um outro homem adulto, uma menina adolescente, um menino pré-adolescente e um menino bem pequeno de uns três anos. Na verdade quem estava à mesa eram os adultos – a menina lavava louça e os meninos estavam sentados no chão.
Pararam de comer, nos cumprimentaram e falaram “sentem, comam com a gente!”. Olhei para a mesa não vi comida – cada um tinha o seu prato feito. Nem sei o que comiam – fiquei com vergonha de ficar olhando. Tinha umas duas panelas no fogão... Fiquei muito constrangida com aquela situação. Pensava: “meu Deus, estamos criando problema para essas pessoas!”
A verdade é que elas não pareciam nada constrangidas. Abraçavam a gente e repetiam “sentem! Vocês ainda não almoçaram né? Comam com a gente.” E o padre e os irmãos da igreja nem falavam “não precisa... vamos almoçar já....” – eles rapidamente aceitaram o convite e se sentaram. Falei baixiho com um dos irmãos: “não é chato?” O irmão disse, fique tranqüila, não tem problema.
Eu vi a mãe chamar o menino pré-adolescente e cochichar uma coisa com ele e ele saiu. A mãe foi para o fogão e começou a preparar um arroz. A conversa corria alegre! Eram trabalhadores rurais – não lembro mais o que plantavam. Mas contavam da plantação e falavam de uma programação da igreja. Contavam histórias dos vizinhos. O padre falava de coisas lá da cidade, citavam pessoas conhecidas. Nós, visitantes, falamos um pouco. Contei do Rio, da Igreja Metodista. Falamos do curso. Todos ouviam com interesse e faziam perguntas.
Daí uns minutos, voltou o menino. Ele trazia numa das mãos uma vara e na outra uma meia dúzia de peixes – tinha ido pescar no rio, que depois eu vi, ficava pertinho da casa. Pescou para nos alimentar! A mãe disse: “Vê se a gente ia deixar vocês sem comida!”. Em menos de uma hora estávamos comendo arroz com peixe. O maior banquete que comi na vida!!
Nunca esqueci disto e da família que nos alimentou com tanta alegria e criatividade. Aquelas pessoas de quem eu nem lembro o nome (certamente elas também não lembram do meu) acolheram Deus na sua casa naquele dia e acredito que continuam acolhendo...
O perigo
Mas precisamos lembrar que tem o contrário – evitar partilhar a mesma mesa. Isto também tem forte significado para se estabelecer quem conta e quem não conta, quem entra e quem não entra, com quem posso conviver e com quem não posso.
Aprendemos com a Bíblia que o próprio povo de Israel estabeleceu práticas e costumes que passaram a privilegiar a pureza, a separação, o que resultou na rejeição dos estrangeiros, dos estranhos, dos forasteiros, como fontes de “contaminação”. Esqueceram que seguiam ao Deus dos “habiru”. Conviver? Melhor evitar. Comer juntos? Nem pensar! Daí o papel dos fariseus, dos legalistas.
Por isso foi necessário redigir vários textos que estão na Bíblia para lembrar a necessidade de amar o estranho, o estrangeiro (segundo aprendemos com o teólogo Inderjit Bhogal este registro aparece nos textos bíblicos 37 vezes), inclusive, este relato da hospitalidade de Abraão aparece nesse contexto.
Por isso foi necessário também que os evangelistas relatassem das tantas vezes que Jesus comeu na casa das pessoas, muitas consideradas “estranhas” e registrassem o pedido de Jesus de que uma mesa de alimentos fosse a memória dele.
Não foi com legalismos que Abraão e Sara receberam os três estranhos. Eles receberam com alegria. Eles prepararam o melhor e os três estranhos partilharam da mesa deles. E é da partilha da mesa que vem a promessa.
No relato, depois estes homens são revelados como “anjos” – um deles é chamado de “O Senhor”. O relato está nos dizendo isso: ao acolher o Outro, Abraão estava acolhendo o próprio Deus, o totalmente Outro. Abraão acolheu o outro, incondicionalmente, como Deus é. E na partilha do alimento está a partilha da vida.
O desafio
Fica a mensagem para nós, como igreja hoje, seguidores deste Deus, o totalmente Outro, o Incondicionalmente Outro. Que chama peregrinos, estrangeiros, forasteiros, para serem o seu povo.
Quem é o outro hoje? Quem são os peregrinos, estrangeiros, forasteiros que carecem da nossa acolhida?
Vivemos num mundo de muito individualismo e desconfiança. Aprendemos a conviver apenas com aqueles que nos dão segurança e nos fazem sentir bem. Na maior parte das vezes, quem é como a gente. Este é o mundo que reproduz os legalismos do passado – da seleção, da exclusão, da separação. Quem conta e quem não conta neste mundo? Com quem vale e com quem não vale a pena conviver? E aí tem muita gente que se torna forasteira, estrangeira em sua própria terra... Moradores das favelas, os sem-terra, os indígenas, mulheres sozinhas, dependentes químicos, homossexuais, as pessoas idosas, as pessoas que têm a pele colorida, pessoas desempregadas, pessoas com deficiência, pessoas que vivem diferentes formas de cultivar a fé, catadores de lixo, pessoas contaminadas com HIV ...
O problema é que muitas vezes as igrejas reproduzem esta exclusão/separação/seleção. Ouvimos por aí interpretações de quem conta e quem não conta para Deus; pregações que demarcam distinções entre “Filhos de Deus” e “Criaturas”; cumprimentos como “A paz do Senhor aos irmãos e boa noite aos visitantes”; pregações e canções que indicam quem é e quem não é vencedor!
Mais do que nunca, para sermos fiéis à vontade de Deus, nossas igrejas precisam ser não só comunidades de acolhida, hospitaleiras, mas comunidades inclusivas. Quem Deus inclui na sua comunidade, precisa ser incluído na comunidade da igreja. Isto é parte da Missão! As nossas mesas têm que servir todas as pessoas e, como Abraão, não temos que esperar que elas nos peçam um lugar – nós é que temos que convidar! E já...