Vistos em um mapa, os territórios palestinos parecem ilhotas em meio ao solo israelense. As fronteiras são lugares tensos; a vida é árida para os dois povos que habitam essa terra. Para muitos palestinos, a visita a um parente que resida numa cidade vizinha ou o cotidiano trajeto ao trabalho pode se transformar num humilhante teste de paciência: para cruzar a fronteira, é necessário passar em postos de controle cercados por grades de ferro. Lembram aqueles corredores que levam o gado à sala de abate. São tantas pessoas, todas as manhãs, que é comum gastar-se até uma hora e meia só para atravessar a fronteira, todos os dias. Desde o fatídico 11 de setembro, o palestino carrega sobre si a pecha de terrorista.
Para o povo israelense, também não é fácil encarnar a figura de opressor diante de seus vizinhos palestinos. Os israelenses precisam conviver com o frio olhar da desconfiança e da animosidade. Recentemente, em visita a Israel, o professor Edson Francisco de Faria, especialista em hebraico da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo, experimentou esse olhar. Brasileiro, o professor Edson dirigia-se ao Muro das Lamentações usando uma kipah, espécie de gorro que deve cobrir a cabeça dos judeus sempre que eles celebram um ato religioso. Identificado, assim, como um judeu, no caminho ele encontrou uma criança palestina. Ela segurava uma arma de brinquedo que parecia uma metralhadora, conta Edson. “Quando a criança me viu, apontou a arma para mim e fez ‘pá!’ ”
“Não há mocinhos nem bandidos neste conflito. A situação desumaniza a todos”, diz Manuel Quintero Pérez, membro da Igreja Presbiteriana Reformada de Cuba que, junto com Michel Nseir, da Igreja Ortodoxa Antioquina, esteve na Faculdade de Teologia da Metodista para participar do “Diálogo Comunitário”. O evento, promovido em março pelo Programa de Extensão da Faculdade, teve como tema Diálogo para a Paz: ações para superar o conflito em Palestina e Israel. Manuel Quintero e Michel Nseir participam de projetos do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) que buscam promover a paz na região. Quintero é coordenador internacional do Programa Ecumênico de Acompanhamento à Palestina e Israel (EAPPI, da sigla em inglês), uma iniciativa do CMI que tem como objetivo apoiar os esforços locais e internacionais para por fim à ocupação israelense nos territórios palestinos . Cubano, formado em Comunicação Social, Manuel Quintero foi diretor de comunicações do Conselho Latinoamericano de Igrejas, CLAI. Michel Nseir atua como executivo de programa do Fórum Ecumênico Palestina-Israel, uma plataforma de Internet criada pelo CMI em 2007 para coordenar as iniciativas das igrejas em favor da paz. Nascido no Líbano e formado em teologia, ele trabalha na sede do Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra. Em suas palestras pelo mundo, Manuel Quintero e Michel Nseir levam uma perspectiva do conflito Israel-Palestino pouco divulgada pelos órgãos de comunicação internacionais: o duro cotidiano do povo que habita este território conflagrado.
Michel Nseir iniciou sua palestra na Metodista com um panorama histórico dos cristãos que vivem hoje no Oriente Médio. Ele lembrou que já dura mais de dois mil anos a presença autóctone de cristãos naquela região. Os cristãos que vivem na Palestina hoje são descendentes diretos dos seguidores de Jesus que formaram as primeiras igrejas, ainda no período do Império Romano: Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Roma e Constantinopla.
“O primeiro cisma no cristianismo ocorreu em minha própria igreja, a de Antioquia”, disse Nseir. Outras divisões vieram depois. No século 13, chegaram as Cruzadas e, com elas, a influência do catolicismo romano sobre as igrejas do Oriente. Novos ramos do cristianismo, ligados a Roma, nasceriam a partir deste contato. A partir da Reforma Protestante do século 16, missionários foram enviados à região com o objetivo de converter os muçulmanos ao cristianismo. Inicialmente chegaram os presbiterianos e anglicanos, e, num período posterior, várias denominações pentecostais. “Terminaram acrescentando mais divisões às nossas igrejas”, afirmou Nseir. Atualmente, existem no Oriente Médio 13 diferentes tradições cristãs, divididas em quatro grupos principais: igrejas ortodoxas caldedonianas (também chamadas de ortodoxas orientais); as igrejas não calcedonianas (armênia, copta, etíope e síria), a católica romana e as protestantes. Elas estão espalhadas por Israel, Líbano Síria, Jordânia, Egito, Iraque e Irã. “São igrejas que sempre viveram num contexto multirreligioso e multicultural; conquanto tenham uma forte identidade sempre estiveram abertas ao contexto circundante”.
Hoje, os cristãos palestinos são marginalizados sob o rótulo de “terroristas” que a mídia internacional ajudou a criar, especialmente após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. “Vivem uma situação de desespero, pois todas as tentativas de negociação falharam até agora. No entanto, eles ainda pronunciam uma palavra de fé, amor e esperança, em um documento chamado Kairós Palestina”, diz Michel. Neste documento, os cristãos da Palestina falam da dura vida sob a ocupação israelense e sobre as teologias que legitimam a opressão. ”Cremos que nossa terra tem uma vocação universal”, diz o texto. “Nesta visão de universalidade, o conceito das promessas, da terra, da eleição e do povo de Deus abre-se para abraçar a toda a humanidade, começando pelos povos desta terra. A promessa da terra nunca foi o título de um programa político. É, sobretudo, uma introdução à salvação universal, o princípio da proclamação do Reino de Deus sobre toda a terra”. Segundo os cristãos palestinos, as interpretações teológicas que legitimam a ocupação israelense converteram-se em uma ameaça à sua existência: “a boa nova do Evangelho se converteu para nós em um anúncio de morte”.
“Qualquer interpretação bíblica fundamentalista que traga morte e destruição petrifica a Palavra de Deus”, diz Michel Nseir. Segundo ele, os(as) teólogos e estudantes de teologia têm diante de si o desafio de revisitar teologias. Observar se elas não estão legitimando a opressão na Palestina, assim como no passado legitimaram as cruzadas e o apartheid na África do Sul. Outra importante tarefa, afirma o teólogo, é conscientizar as igrejas locais a respeito da realidade vivida pelos cristãos(ãs) do Oriente Médio. Das instituições, ele espera posturas solidárias que busquem intervir junto aos governos em favor da paz, “de forma a continuar o testemunho cristão nesta terra onde nasceu o cristianismo”. Para Nseir, o maior testemunho cristão no Oriente, hoje, não significa mandar mais missionários ou auxílio financeiro, mas estar em solidariedade custosa, que arrisca a reputação para defender estes cristãos.
Testemunhas oculares
Em suas palestras, Manuel Quintero costuma mostrar mapas que mostram a sucessiva diminuição das terras ocupadas pelos palestinos. Após 1949 e 1967 (veja quadro) a terra que os palestinos habitam é menos de 22% do tamanho original. “Como construir um estado numa situação de arquipélago?”, questiona ele. Segundo Quintero, o CMI quis responder ao “pecado da ocupação” com a solidariedade do acompanhamento. “O CMI pensou que seria importante enviar voluntários para estar presente na vida das comunidades – não apenas cristãs, mas também islâmicas – que sofriam com a ocupação. Assim surgiu o Programa de Acompanhamento em Palestina e Israel (Ecumenical Accompaniment Programme in Palestine and Israel, EAPPI)”.
Ele explicou que o programa EAPPI recebe voluntários(as) do mundo todo. Eles monitoram a região e informam sobre a violação de direitos humanos e as leis humanitárias internacionais. Uma de suas tarefas é acompanhar os palestinos que passam pelos postos de controle todas as vezes em que, para ir de uma cidade palestina a outra, são obrigados a ingressar em terra israelense. Os voluntários também acompanham crianças palestinas que vão a escola e sentem medo de passar pelos postos de controle, onde costumam ser hostilizadas pelos colonos israelenses.
Desde o início do programa, em 2002, já participaram do programa 600 acompanhantes ecumênicos de mais de 30 igrejas e organizações de 15 países. A partir do diálogo do EAPPI com igrejas cristãs da América Latina, o EAPPI abrirá vagas para voluntários(as) latinoamericanos(as). Para participar, os(as) interessados(as) terão que passar por um treinamento que inclui conhecimentos históricos e geográficos da região, direito internacional e técnicas de “não violência”.
“Os testemunhos começam a mudar a percepção do conflito”, diz Manuel. Os voluntários que vêem a situação da Palestina de perto levam de volta a seus países um novo olhar sobre a questão. “Se seguimos pensando com estereótipos jamais entenderemos o conflito. Não apenas esse, mas os conflitos existentes no Brasil e nos países vizinhos”, diz ele. Segundo Manuel Quintero, é necessário seguir o conselho do apóstolo Paulo de “analisar tudo e reter o que é bom”. No caso do conflito no Oriente Médio, isso significa estudar mais a história mais a fundo, indo além da superfície mostrada pelos meios de comunicação. “Não queremos apresentar a uns como bons e a outros como maus. Trata-se de falar de uma situação de desumanização que afeta tanto israelenses quanto palestinos. Até que a dignidade humana se recupere não haverá paz na Terra Santa.”
Suzel Tunes
Para entender o conflito
As raízes do conflito Israel-Palestina remontam ao século 19, quando sionistas (judeus integrantes de um movimento que defendia a existência de um Estado Judaico, em resposta ao antissemitismo sofrido na Europa) começaram a criar assentamentos na região, na época controlada pelo Império Otomano. No dia 14 de maio de 1948 o Estado de Israel foi proclamado. Em 1967, na chamada “Guerra dos Seis Dias”, o Exército israelense conquistou o deserto do Sinai, a faixa de Gaza (Egito), a Cisjordânia, Jerusalém Oriental (Jordânia) e as colinas do Golã (Síria). O governo israelense daquela época, liderado pelo Partido Trabalhista, anunciou que não tinha intenções de manter os territórios ocupados e que esses serviriam como “cartas para a negociação, com o objetivo de assinar um acordo de paz geral com o mundo árabe”. Mas alguns destes territórios que Israel “não tinha intenções de manter” foram colonizados e parte deles (as colinas do Golã e Jerusalém Oriental), anexada por lei.
Entre 1987 e 1993, os palestinos empreenderam uma revolta popular contra Israel que ficou conhecida como Intifada e incluiu uma série de atentados contra judeus. Em setembro de 2000 houve uma segunda Intifada. Em 2002, o governo de Israel resolveu impedir a entrada de terroristas no país construindo um grande muro de proteção. A construção inclui uma série de muros de concreto, trincheiras fundas e cercas duplas equipadas com sensores eletrônicos. No dia 24 de março de 2010, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou três resoluções condenando o governo israelense por suas políticas nos territórios sírios e palestinos sob ocupação. A primeira resolução exige o fim da ocupação nos territórios palestinos conquistados em 1967 e o fim das agressões contra civis palestinos e o seu patrimônio cultural. O texto também pede o fim das operações militares no território palestino e a suspensão imediata do bloqueio econômico em Gaza. A segunda resolução pede a paralisação das construções em todos os assentamentos em territórios ocupados, além de exigir a desocupação das colônias existentes. O terceiro documento condena Israel por “violações sistemáticas” de direitos humanos nas colinas do Golã, território sírio sob ocupação. Os Estados Unidos votaram contra as três resoluções, afirmando que nenhuma delas contribui para a paz no Oriente Médio.
Com informações da BBC Brasil/Folha OnLine e Jornal do Brasil On Line:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u301813.shtml. Acesso em 26 de março de 2010.
http://jbonline.terra.com.br/leiajb/2010/03/25/primeiro_caderno/tres_resolucoes_da_onu_condenam_ocupacao_judaica.asp. Acesso em 26 de março de 2010.