CONTINUAÇÃO DA DISPUTA ENTRE ISAÍAS E ACAZ (Is 7.10-17).
Esta é a segunda cena da disputa entre o profeta Isaías e o medroso rei Acaz. Continua a preocupação do profeta com o rei e a sua corte, porque eles continuam a ter medo dos inimigos que ameaçam Judá e Jerusalém. Isso não é normal para uma liderança nacional, pois ter medo é perigoso para a integridade do povo. Diante desse perigo, o profeta manifesta um maior grau de preocupação. Ele tem pressa para solucionar essa crise e restaurar a vida plena no Reino de Judá.
1. O texto de Isaías 7.10-17.
1.1 Tradução
(10) E acrescentou Javé uma palavra a Acaz dizendo:
(11) Pede para ti um sinal de Javé, teu Eloim;
Pede da profundeza;
ou pede da altura da de cima.
(12) E disse Acaz: Não pedirei e não testarei Javé.
(13) E disse:
Ouvi, agora, Casa de Davi!
Não vos basta cansardes homens?
Eis que! Quereis fatigas também meu Eloim?
(14) Por isso dará Adonai para vós um sinal.
Eis! A jovem mulher conceberá
e dará à luz um filho,
e chamará seu nome Imanuel.
(15) Leite coalhado e mel ele comerá
para que saiba rejeitar o mal
e escolher o bem.
(16) Eis que! Antes que saiba o rapaz rejeitar o mal
e escolher o bem,
será abandonada a terra cultivável
diante de cujos dois reis tu tens medo.
(17) Javé fará vir contra ti,
contra teu povo,
e contra a casa de teu pai,
dias como não vieram desde o dia
em que Efraim se afastou de Judá.
O rei da Assíria.
1.2 Estrutura do texto
Fórmula narrativa do discurso profético v. 10
Disputa entre Javé/Isaías e Acaz v. 11-17
a) Primeira parte da disputa v. 11-12
Ordem de Isaías a Acaz: "pede um sinal!" v. 11
Resposta de Acaz: "não pedirei e não testarei" v. 12
b) Segunda parte da disputa v. 13-17
Questão retórica de Isaías v. 13
Isaías anuncia o sinal: o nascimento de Imanuel v. 14-17
- o anúncio do nascimento de Imanuel v. 14
- elaboração sobre o significado do sinal v. 15-17
sobre a alimentação da criança v. 15
explicação sobre o tempo da intervenção assíria v. 16-17.
Explicação da estrutura do texto
O texto de Isaías 7.10-17 descreve a segunda cena da disputa entre Javé/Isaías e o rei Acaz. A estrutura exposta acima tem a função de um "Raio X" que procura mostrar a formação literária que sustenta os argumentos do texto. Assim, os versos 10-12 constituem a base sobre a qual os demais versos (v. 14-17) estão convergindo-se. Por exemplo, o anúncio de Emanuel acontece em razão da recusa de Acaz pelo sinal (v. 14). Os versos 15-17 são elaborações sobre o significado do sinal. Evidentemente que a função do verso 10 é legitimar toda a perícope (7.10-17).
2. Interpretando o texto.
Esta perícope ou parágrafo (Is 7.10-17) tem estreitas relações com as duas anteriores, a saber, Is 6.1-13 e 7.1-9. Quatro motivos levam a tal conclusão:
primeiro, os relatos (6.1-2 e 7.1-2) são seqüenciais, sem alterar a circunstância histórica;
segundo, a continuação da crítica profética ao medo do rei Acaz (v. 16);
terceiro, o verso 14 faz voltar a figura da criança (v. 3);
quarto, a expressão verbal "e acrescentou" (v.10) liga esta perícope (v. 10-17) à anterior (v. 1-9).
Todos estes argumentos reforçam a idéia de que os capítulos 6 a 9 formam realmente um só bloco, a saber, o Livro de Emanuel.
A fórmula narrativa da palavra profética (v. 10) é pouco observada pelos/as leitores/as, por ser repetitiva e freqüente nos livros proféticos. Porém, tais fórmulas têm uma função especial nos pronunciamentos proféticos: são elas que comunicam a autoridade divina das palavras do oráculo. Ao mesmo tempo, é possível imaginar que o profeta estava falando para uma platéia desconfiada da autoridade profética. Por essa razão, as variadas fórmulas de introdução à palavra profética - "E veio a mim a palavra de Javé" ou "E disse Javé", incluindo a formulação de Is 7.10 - constituem-se autênticas declarações de legitimidade divina.
Disputa entre Javé/Isaías e Acaz (v. 11-17).
A disputa entre Javé/Isaías e Acaz continua (v. 11-12).
Estes dois versos são marcados pela pressa. Na disputa, Isaías usa dois verbos no imperativo - "pede para ti um sinal" e "pede da profundeza" (v. 11) e Acaz responde de modo contundente com duas negativas: "não pedirei" e "não testarei a Javé" (v. 12).
A pressa do profeta e a raiva do rei devem-se à permanência do medo de Acaz e de sua corte. No verso 16, o verbo qut com o sentido de amedrontar-se, no particípio, denuncia que o medo permanece presente entre os líderes da nação.
A palavra profética (v. 13-17).
Esta perícope (v. 10-17) é caracterizada como palavra de Javé (v. 10), comunicada pelo profeta Isaías (v. 11-17).
A primeira parte da palavra do profeta está voltada para o "sinal". Diante da ordem de Isaías - "Peça para ti um sinal de Javé, teu Eloim" - Acaz recusa obedecer ao profeta (v. 12). Essa negativa transforma-se na razão do pronunciamento do profeta (v. 13-17). O que seria, então, o "sinal de Javé"?
A palavra hebraica, em Is 7.11 e 14, é oi. Há vários sinônimos de oi sinal no Antigo Testamento:
mopet maravilha, milagre
"... com provas,
com sinais oi,
e com milagres mopet,
e com peleja,
e com mão poderosa
e com braço estendido,
e com grandes espanto... (Dt 4.34).
zikaron memorial, lembrança.
"E será como sinal oi na tua mão,
e por memorial zikaron entre teus olhos..." (Ex 13.9).
totapot frontal, filactérios
"E isto será como sinal oi na tua mão,
e por frontais totapot entre os teus olhos..." (Ex 13.16).
´edut testemunha, sinal de advertência.
"Servirá de sinal e de testemunho a Javé (...) na terra do Egito..." (Is 19.20).
masah prova
"Das grandes provas masah que viram os teus olhos,
e dos sinais e maravilhas,
e mão poderosa e braço estendido... (Dt 7.19).
Analisando a questão:
Não é fácil desatar o nó do significado de oi sinal em Isaías 7. 11 e 14. Porém, o uso de oi sina, junto aos cinco substantivos mencionados acima, pode ajudar a clarear a questão.
Primeiro, o uso secular de oi sinal está ligado a preservação dos interesses da família (Nm 2.2) ou grupos em conflito (Sl 74.4). Os "sinais" são também estratégias de guerra. No uso secular o que é enfatizado é o seu caráter funcional. Por exemplo, a bandeira funciona como um instrumento sinalizador numa guerra.
Segundo, o significado teológico de oi sinal é abundante e fértil no Antigo Testamento. O grande exegeta Herman Gunkel definiu o ´sinal` como uma ação, uma ocorrência, um evento pelo qual uma pessoa reconhece, lê, lembra ou percebe a autenticidade de alguma coisa. Entretanto, é possível avançar um pouco além nesta compreensão, analisando a função e o significado de oi sinal.
O dado mais significativo que o Antigo Testamento acrescenta ao significado de "sinal" é que ele, freqüentemente, está ligado aos eventos históricos do êxodo. É bem verdade que o "sinal" está também relacionado à linguagem da criação ou da natureza, a saber:
os luzeiros no firmamento (Gn 1.14),
o arco-íris (Gn 9.12,13,17),
a produção no campo ( Is 37.30; 55.13),
bem como à circuncisão (Gn 17.11),
ao sangue do cordeiro pascal (Ex 12.13),
ao comer o pão asmos (Ex 13.9),
ao sábado (Ex 31.13,17).
Terceiro, já é tempo de voltar a Isaías 7.10-17 e verificar qual é o sentido de oi sinal empregado por esse profeta. Uma pergunta faz-se necessária: qual foi a intenção de Isaías em recomendar Acaz a pedir um "sinal de Javé"? Para encontrar uma resposta é preciso, primeiramente, lembrar que não existe solução mágica em exegese bíblica. É preciso analisar o texto com seriedade. Assim:
a) O uso deste termo hebraico nos versos 11 e 14 possui um sentido especial.
"Sinal", aqui, não é concessão de sabedoria especial ou poderes mágicos, tal como descrita na história das pragas do Egito (Ex 7.3 e 7.8- 13.16);
nem sinal de proteção, conforme Gn 4.15;
nem sinal da aliança, conforme Gn 9.12-13;
nem o ativador da memória, conforme Ex 13.9.
Contudo, a recomendação de Isaías busca motivar o rei Acaz a crer na ação de Javé. As palavras que encerram a perícope anterior (7.1-9b) substanciam este argumento:
"Se não credes (...) não permanecereis" (7.9b).
A intenção do profeta Isaías é persuadir Acaz não temer a ameaça de Rezin e Peca. (7.4), mas a crer em Javé (7.9b).
b) Ligado à questão do "sinal" está a negação de Acaz. Por que Acaz responde com certa violência ao profeta:
"Não pedirei e não testarei Javé" (7. 12).
Esta resposta esclarece a pressa de Isaías em interpelar o rei que se fechou à palavra de Deus. Aparentemente, a disposição de "não testar" ou "não tentar" a Javé pode parecer uma atitude elogiável de Acaz, por estar de acordo com a tradição religiosa (Ex 17.2,7; Dt 6.16). Entretanto, Acaz está esquivando-se de assumir a fé. No fundo, ele está se escondendo atrás de uma teologia montada sobre textos piedosos, por causa do medo dos adversários. Tomar o caminho da fé não é tentar Javé.
c) Diante da tentativa de dissimular a fé, Acaz recebe uma ameaça profética. O termo hebraico laken portanto (v. 14a) indica que o profeta anuncia uma palavra de ameaça. Na verdade, a ameaça (v. 14-17) é uma explicitação, através de palavras, do anúncio do "sinal".
"Eis!
A jovem mulher conceberá
e dará à luz um filho,
e chamará seu nome Imanuel (v. 14).
d) A exegese bíblica, ao longo dos séculos, tem incorrido em dois perigos:
interpretar o sinal do Emanuel, isolando-o do contexto histórico, descrito em 6.1-9.6.
discutir, prioritariamente, a virgindade da "jovem mulher (v. 14).
Estas duas preocupações têm engessado a discussão do real significado que encerra o anúncio de Emanuel. Por outro lado, esse sinal carrega dois aspectos que, aparentemente, se opõem. Mas é urgente analisar este sinal com responsabilidade:
Primeiro, Emanuel, no hebraico ´imanu`el, significa conosco (está) Deus (a transliteração fê-lo "Emanuel"). Apesar dos versículos 13-17 conterem uma ameaça, eles conduzem um sentido salvífico e pastoral. Duas razões apontam para isto:
O próprio nome - conosco (está) Deus - revela a intenção de passar confiança e certeza da presença de Deus, mesmo em meio às incertezas políticas. O anúncio de salvação, que o nome Emanuel encerra, é dirigido para o povo de Judá, e não para os medrosos e descrentes, a saber, Acaz e sua corte.
O conteúdo e a intenção salvífica do Imanuel estão indicados, também, na sua alimentação - "leite coalhado" e "mel" (v. 15) - própria da era da salvação, tal como pensava e esperava o povo a caminho da Terra Prometida (Ex 3.8,17; Dt 32.13-14).
Segundo, é preciso salientar que o Emanuel guarda e expressa o juízo de Deus sobre a corte de Jerusalém. Nesse oráculo de Isaías (7.10-17), o menino Emanuel vem para julgar a Casa de Davi e levá-la discernir entre o bem e o mal (v. 15b).
e) A criança desempenha um papel destacado no Livro de Emanuel (7.3,14,16; 8.3-4). Isso não constitui novidade para uma das tradições messiânicas de Judá que tinha no menino e pastor Davi, o herói maior (1 Sm 16.1-13). Para as pessoas que viviam em torno dessa tradição de Davi, a entronização de dois reis-meninos - Joás (2 Rs 12.1-4) e Josias (2 Rs 22.1-2) - não representou dificuldade.
f) Por fim, é preciso fazer uma referência ao termo hebraico ´almah jovem mulher (v. 14b). A tradução e interpretação da palavra ´almah tem trazido dois pontos de conflito:
O primeiro ponto de conflito tem sido substanciado pela versão grega da Septuaginta, que traduziu a palavra hebraica ´almah com o termo grego parténos virgem. Como a língua original do Antigo Testamento é o hebraico, é recomendável que a leitura preferencial seja ´almah jovem mulher - uma moça até o nascimento do primeiro filho.
O segundo ponto de conflito aponta uma tendência entre os intérpretes, que coloca no mesmo nível de significado a "jovem mulher" e o "Emanuel". Todavia, é preciso analisar as duas pessoas, salientando a figura de Emanuel como o eixo em torno do qual os capítulos 6 a 9 giram.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Livro de Emanuel quer mostrar que Deus chama o seu profeta num momento de angústia e crise do povo ("no ano da morte do rei Uzias" 6.1);
O Livro de Emanuel pretende mostrar que o medo antepõe a fé. Crer em Javé é condição única para avançar: "Se credes... permanecereis";
A proclamação do profeta Isaías anuncia o Emanuel, isto é, que Deus está com o povo apesar das crises. Este "sinal" é um julgamento para o descrente Acaz, mas é um anúncio de salvação para o povo que vivia em trevas.
BIBLIOGRAFIA
HARRIS, R. Laird et all. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
SCHOKEL, L. A. & SICRE J. L. Profetas 1 - Isaías, Jeremias. São Paulo: Paulinas, 1988.
SCHWANTES, Milton. Isaías - textos selecionados. Vol. 1e 2. São Leopoldo: Setor de Publicações Faculdade de Teologia da IECLB, 1979.
SICRE, J. Luis. De Davi ao Messias - textos básicos da esperança messiânica. Petrópolis: Vozes, 2002.
VV.AA. In: Proclamar Libertação. Volumes: VI pg 198; XII pg 213; XIII pg 104, XXI pg 37.