O caso Isabella Nardoni ficará gravado na mente de muitos de nós por muito tempo. É um caso diferente, novo, a ponto de mobilizar uma sofisticada perícia criminalística, como na série CSI; e sensibilizar a atenção de advogados e promotores forenses. Esse crime aturdiu e ainda causa comoção na população brasileira.
Deixando todo sensacionalismo de lado, a morte desta criança recoloca o dedo sobre uma outra ferida, a meu ver, tão grave como essa do assassinato, que goteja rastros de sangue quase imperceptíveis à reação química do luminol. Refiro-me à violência doméstica.
A família sofre faz tempo com essa prática que se esconde sob uma capa de invisibilidade. Quando não deixa marcas físicas, o agressor sempre deixa traços latentes em sua vítima. As tatuagens psicológicas, impressas na psique de crianças e adolescentes, se não detectadas e tratadas a tempo, se tornam um inferno dantesco, real e onipresente ao longo da vida dessas pessoas.
Esta constatação não é fruto de uma elaboração antropológica. É resultado de alguém que, ao longo de dezesseis anos de fé cristã, já viu de tudo um pouco. Inclusive acompanhando pessoas em processo de degradação e violência familiar. Quando esse mal da violência se instala na família as crianças são o alvo predileto de pais e mães encolerizados, que buscam uma vítima para expiar seus insucessos profissionais ou amorosos.
Como cristão-protestante não posso ficar de fora desse ambiente de discussão presente na sociedade civil, às voltas com esse acontecimento trágico. Existe um clima fúnebre no ar, um sentimento de indignação e espanto por parte das pessoas. Indignação porque, de novo, a vítima se trata de uma criança. Espanto porque há indícios e provais cabais que apontam para o pai e a madrasta como os prováveis agressores.
É isso que tem consternado a todos nós e sensibilizado a sociedade brasileira. O povo, nas ruas, clama por justiça. Não quer impingir um julgamento precipitadamente. Mas se impacienta e fica irrequieto devido a forma e onde a criança Isabella morreu.
Certamente este caso não é mais um envolvendo a morte prematura de uma criança. O pano-de-fundo que embala a cena do crime tem a ver com rivalidade, ciúme, briga, violência e um assassinato, segundo os autos do inquérito. O que torna chocante o caso de Isabella Nardoni é o fato de que este crime ocorreu "num lugar quase insuspeito", "menos improvável" para a cena de um crime: a casa, o espaço doméstico. Esse reduto comunitário e seguro que convencionalmente denominamos família foi novamente golpeado.
Essa é a geografia dessa trama sangrenta. Isabella não morreu na rua, na praça, não foi sequestrada e morta no bairro em que morava. Seu crime se deu exatamente na esfera da família. Foi exatamente aí o lugar em que a tragédia se abateu, dentro e não fora dessa bolha supostamente protetora.
A forma como se deu e o lugar em que foi praticado tal crime põe em xeque o modelo que nutrimos acerca da família. Neste, a família surge designando uma unidade espiritual, fundada nos laços de consangüinidade. Representa, assim, um espaço de crescimento e de maturação dos seus membros. É concebida como um espaço em que deve reinar a segurança, o bem-estar, a harmonia, a proteção.
Família, segundo a noção mais rasa que temos, é o espaço ideal para o encontro, conforto e fortalecimento do grupo. No caso de Isabella Nardoni, e de muitos outros lares no Brasil, a morfologia do crime se circunscreveu exatamente neste espaço. O núcleo doméstico, uma vez mais, foi desmascarado e se transformou num palco em que atos de violência e de crueldade ocorrem mormente dentro dele.
Os espaços domésticos vivem às moscas em nosso país, debaixo de uma falsa proteção. Gangrenam, estão fragilizados, ameaçados de morte. Quem, em sã consciência, poderia suspeitar que o lar, ou a família, acabaria por se tornar num ambiente marcado pela disputa, pela tortura e pelo horror? O que dá destaque a esse crime, ainda, é que ele aconteceu no interior de uma família de classe média de São Paulo, oriunda de advogados, cuja função é a de cumprir a lei e de estabelecer a justiça.
O lugar vivencial em que este crime aconteceu também desbanca uma outra tese, conforme a qual a violência ocorre com regularidade em lares situados nos "bolsões da miséria", os chamados "lares favelizados", os quais não possuem estrutura psicossocial para manutenção e cuidado dos seus pares.
Os lares desses desvalidos fora identificado como o epicentro a partir do qual e graças ao qual se irradiava a violência para além dos contornos urbanos. Hoje essa formulação é insustentável, já não diz mais nada. O caso Isabella Nardoni, assim como outros crimes iguais ao seu, demonstra que o fenômeno da violência familiar e urbana não pode ser entendido hermeticamente, mas de modo pluridisciplinar.
Os altos índices de violência doméstica – que atingem milhares de crianças, é transfronteiriça. Sequer tem cor, raça, estratificação social, credo religioso. Espraia-se por todos os lados, perpassando todos os níveis da cultura e família brasileiras.
Analisando panoramicamente esse tipo de problemática, o da violência familiar – que está presente nas "melhores" e "piores" famílias - quantas Isabellas de classe média urbana ou não, ontem e hoje, não são arremessadas pela insensibilidade e frieza das famílias? Quantas não são jogadas pela janela da fome? Estranguladas pela violência em nosso país? Lançadas pela janela da discriminação? Abandonadas, exploradas e marginalizadas pela própria família? Quantas não são obrigadas a serem adultas antes do tempo, muitas das quais obrigadas a dizer o que não querem, a serem "artistas mirins", ou no farol, a trabalhar feito gente grande?
Nossa sociedade não tem dado às crianças o direito de serem o que são. Não se criam ambientes salutares para que cresçam e sejam felizes. Cansamos de tanta violência contra crianças, adolescentes, mulheres. Precisamos impedir e denunciar os crimes contra esses grupos de pessoas. É hora de denunciar os crimes velados, os pecados acobertados, que são praticados pelos adultos no interior das casas, ora contra os pequeninos, ora contra a mulher, de uma forma oculta e silenciosa.
Acima desse espírito denunciador, temos também que conscientizar as pessoas para que se desarmem, que abram mão da cultura da violência, que impregna o espírito do nosso tempo. Precisamos dizer a elas que evitem pagar na mesma moeda. Temos de apelar ao bom senso dos indivíduos, assim como Cristo apelou à consciência de Pedro, depois de ter decepado a orelha do soldado Malco. "Abaixa a espada, Pedro. Pra que tanta violência? Desarme-se, renuncie ao espírito vingativo! Quem usa da violência, quem dela se banha, pelas mãos da violência morrerá" (Paráfrase de Mt 26,52).
Em Cristo não há espaço para vingança, marcas de sangue, ocultamento de cadáveres. O homem precisa parar de ser o devorador de si mesmo. Precisa parar de se violentar e estancar o sangue que jorra da própria carne. Chega de agir barbaramente, de encurtar a vida e o tempo das pessoas, sobretudo o das crianças.
É preciso, por outro lado, cuidar das famílias que passam por situações de agressão e violência. A igreja precisa ser um espaço terapêutico. Necessitamos cuidar ou encaminhar pessoas machucadas para tratamento médico, psicológico ou pastoral, dependendo de que caso for. Precisamos defender crianças exploradas, maltratadas pelos pais, tios/as, irmãos/ãs, sobrinhos/as. Precisamos orar pelas famílias brutalizadas e sem motivação para prosseguir.
Não quero crer que um pai arremessou sua filha pela janela de seu apartamento tomado por uma onda de impulsividade. Tal ato é reprovável até para os que atiram latas de cerveja da janela dos prédios. Porém se ao término do inquérito policial ficar comprovado que a madrasta asfixiou a menina e seu pai a arremessou viva do sexto andar do prédio em que moravam, aí só ficará patenteada a minha suspeita e consternação: a família toca uma melodia agônica, uma nota de medo, agonia e dor.
Se realmente essa família assassinou essa criança, e todos os laudos apontam para isso, caso me perguntem como a família pode ser definida hoje, darei uma resposta ao modo socrático: só sei que nada sei, ela escapa a toda definição. Não tenho mais respostas prontas para perguntas como essas, aparentemente simples e triviais. É bem provável também que, daqui a pouco, acima de nossas revisões normativas e conceituais tenhamos de repensar, fundamentalmente, as nossas práticas familiares.
Espero que o caso Família não seja arquivado ao se encerrar o caso Isabella Nardoni. Mas que esse caso retifique que a família está doente, está mal, e que necessita de um corte, de um tratamento, de uma intervenção rápida e imediata. Deus nos ajude a tratar e a cicatrizar as feridas familiares, para que continuemos a acreditar e apostar as nossas fichas nela.
Torço para que a mãe dessa menina refaça seu caminho, renove suas forças e encontre meios para superar um luto que não é só dela. Esse luto é nacional. É de todas as famílias que são assoladas pela violência doméstica, que sonham com uma família na qual não sejam aviltadas as malhas da esperança, que lutam para que não sejam cortadas as redes (finas) de proteção.
Jesus Tavernard Júnior é ex-aluno da Fateo, turma de 2002. Está pastoreando Igreja Metodista Central em Porto Velho-RO e é docente no Instituto Metodista da Amazônia (IMAM).